Quanto custa um erro?
Talvez o tempo me dê razão muitas vezes. Incomoda-me que esse mesmo tempo seja por vezes tão extenso, mas quando isso acontece e razão me é devolvida, é necessário que a poeira que entretanto assentou sobre os factos não cubra por completo a razão que pensei originalmente possuir.
Não sou um profissional da política. Nunca fui, nunca quis ser, mas tenho a certeza de que aquilo que decido é analisado em consciência e pouco mais pretendo senão que esse esforço faça a minha consciência ficar em paz após as minhas escolhas, caldeada por ideais ou valores que defenda.
Foi por isso que me disponibilizei para a causa pública, por achar que mais do que reclamar, era tempo de eu mesmo agir, no fundo vir a aferir as dificuldades de resolução dos problemas que todos encontramos nas nossas comunidades e que, do lado de fora, são sempre aparentemente tão fáceis de resolver…
Talvez o tempo me dê razão muitas vezes. Incomoda-me que esse mesmo tempo seja por vezes tão extenso, mas quando isso acontece e razão me é devolvida, é necessário que a poeira que entretanto assentou sobre os factos não cubra por completo a razão que pensei originalmente possuir.
Em Setembro de 2016, numa reunião ordinária da Vereação da Câmara Municipal da Moita para a qual fui chamado em substituição de um eleito do Partido Socialista, fui confrontado com a existência na Ordem de Trabalhos da apreciação e decisão de um Processo Disciplinar a um trabalhador da Câmara Municipal.
Em organismos de composição política, não sou ingénuo, as matérias ganham uma delicadeza especial, os cemitérios estão pejados de autores de processos de intenções disfarçados de postulados legais. Já lá estive, já os vi, requerem atenção redobrada.
Tenho a experiência suficiente para já ter participado em instrução e participação deste tipo de matérias. Longe de serem questões meramente administrativas, um Processo Disciplinar mexe com pessoas, a sua honra e dignidade, seja laboral, desportiva ou qualquer outra. Requer de quem aprecia e decide, estudo, ponderação e conhecimento actualizado das balizas legais de sanções que existam para a matéria em análise.
Em organismos de composição política, não sou ingénuo, as matérias ganham uma delicadeza especial, os cemitérios estão pejados de autores de processos de intenções disfarçados de postulados legais. Já lá estive, já os vi, requerem atenção redobrada. Por isso mesmo requeri a consulta do processo que li e me causou as dúvidas e certezas que debateríamos na reunião em causa.
O Executivo, na altura maioritário de eleitos CDU, avançava com uma sanção de suspensão de funções por 45 dias com perda de retribuição. Fiz questão de ler a matéria factual instrutória, confrontar as avaliações anteriores do trabalhador e interrogar-me da razão de se propor uma sanção que na gradação de sanções da Lei Geral dos Trabalhadores em Funções Públicas está deveras longe de ser a mais leve. Não é hábito, embora possa amiúde ser usual. Já lá estive, já os vi.
De novo, não sou ingénuo quanto a processos de intenções. Atalhar a escala de sanções, subindo vários degraus de uma só vez, tem quase sempre um objectivo final em mente, o de levar à desistência por cansaço ou ao despedimento em processos posteriores acumulados.
Na minha intervenção, longe de dissecar aspectos legais que julgava (erradamente) bem entregues aos serviços jurídicos camarários, centrei-me na desproporcionalidade da sanção, que não sendo uma questão estritamente legal, é sim bastante mais política. Com excepção do Presidente e do Vereador do Pelouro responsável pela instrução do processo, Miguel Canudo que se alongaram na defesa das suas razões, fui o único que teceu considerandos à extensão da sanção e à dureza da mesma perante um incidente primário. À boa maneira a que o então Executivo maioritário nos habitou (e cujo hábito infelizmente não perdeu em mandato posterior), “é esta e pronto“. O resultado da votação seria um mero pro forma legal. Bem-vindos às regras da democracia.
Da minha análise deste processo, bem como de outros, decorre uma conclusão que também apontei, a de que há demasiada ligeireza e fragilidade na instrução dos mesmos. Fragilidades que uma contestação pode facilmente desmontar, falhas e actos administrativos que por negligência dos instrutores podem fazer ruir o edifício da intenção de punir
Obviamente que não demovi ninguém com os meus considerandos (antes o tivesse conseguido) quanto ao estipulado no postulado da decisão sancionatória e ao que considerei desadequado e desproporcional. Manda a verdade que diga que em reunião preparatória anterior, com os meus companheiros de bancada, também não atingi esse objectivo, o de demonstrar que era um exagero sancionatório. A discussão em reunião de Câmara acabou por fazer luz sobre o que eu já tinha adivinhado. Havia intenção (clara) de causar dano apreciável e o resto deduzirá o leitor porque há coisas que pensadas são mais gratificantes.
Da minha análise deste processo, bem como de outros, decorre uma conclusão que também apontei, a de que há demasiada ligeireza e fragilidade na instrução dos mesmos. Fragilidades que uma contestação vigorosa e fundamentada pode facilmente desmontar, falhas e actos administrativos que por negligência dos instrutores podem fazer ruir o edifício da intenção de punir. Não está nesta acta, mas está noutras similares em que por mais de uma vez informei o órgão reunido que tinha a certeza de que numa contestação tecnicamente bem fundamentada, a razão seria facilmente dada ao trabalhador com os consequentes prejuízos que dessas decisões emanem. Retirado mais um tijolo das fieiras da construção da ingenuidade, fazem-se “certezas” da inação do sancionado, da sua fragilidade cultural e económica (deduções minhas) para que o castigo fique sem resposta ou reação. Mas nem sempre acontece, felizmente para o nosso sentido de justiça.

Votei vencido. Tão vencido que nem os meus colegas de bancada me acompanharam. O único voto contra a sanção naqueles moldes foi da minha autoria (o escrutínio destas decisões é feita por voto secreto). Devo dizer, e os meus colegas de vereação poderão atestar, que não fiquei nada satisfeito com a disparidade da intenção de voto, mas enfim, ao contrário de outros que votam em bloco por “default“, a pluralidade de pensamento e o espírito democrático nortearam sempre as decisões da bancada socialista dos então eleitos pelo Partido Socialista. São raros os desalinhamentos de voto, mas nestas questões cada um que use do seu próprio discernimento.
As vereações camarárias que apreciam estas matérias não são tribunais. Na maioria das vezes são compostas por pessoas sem qualquer formação jurídica (o que nem sempre é irrelevante e nem sempre é relevante), mas são exigíveis valores como a ponderação e responsabilidade. “Responsabilidade” que a bancada do Bloco de Esquerda, protagonizada pelo seu único vereador eleito, Joaquim Raminhos, fez questão de inequivocamente demonstrar no final da votação. É arrepiante, política e moralmente patético que alguém que aprecia uma questão deste cariz decida consultar o processo em causa depois de o votar. Os trabalhadores que julguem desta decisão, pois para memória futura, é quanto basta.

As vereações camarárias que apreciam estas matérias não são tribunais. Na maioria das vezes são compostas por pessoas sem qualquer formação jurídica (o que nem sempre é irrelevante e nem sempre é relevante), mas são exigíveis valores como a ponderação e responsabilidade
Como acima referi, a votação com maioria partidária é um mero pro forma legal e a deliberação foi feita sem grande ou nenhuma surpresa com a aprovação da proposta.
Não sendo parte no processo senão um singelo elemento da deliberação, não tive forma (nem interesse desmesurado) no seguimento de eventual contestação. Acabei até por esquecer o tema e dele só me recordar quando os anos foram correndo e fui vendo em Ordens de Trabalhos subsequentes outras apreciações e deliberações similares. Até que há poucos dias alguém me chamou a atenção sobre “uma sentença da tua terra” exarada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada. (Não sendo natural da Moita, mas nela vivendo há quase 30 anos, apraz-me particularmente que a designem por “minha terra“). Foi pois com surpresa que me vi regressado a este assunto. O trabalhador visado contestara o acto administrativo e, sem nenhuma admiração ou espanto, vencera a causa de que era autor.

Então? Então não era forte e sólida convicção dos superiores hierárquicos dos serviços jurídicos da Câmara Municipal da Moita que a acção disciplinar estava devidamente fundamentada? Que “é esta e pronto“? Que ignorar as primeiras alíneas das penas de repreensão era pouco acertado? Claro que urgia ir ver em detalhe as conclusões da meretíssima juíza para daí tirar ilações. A Câmara Municipal da Moita via as suas pretensões derrotadas em toda a linha, via o acto disciplinar e administrativo anulado sem sombra de qualquer dúvida e era condenada a suportar as custas. Contas feitas apressadamente, a cento e dois euros por UC (Unidade de Conta), mais incidentes e custas de parte, quaisquer mil e quinhentos euros deverão chegar para início de conversa.

Esmiuçem-se então as conclusões judiciais. Em primeiro lugar, (et pour cause), a violação do princípio da proporcionalidade das penas (desproporcionalidade e adequação das penas). Nada que não tivesse sido a minha base expositiva, nada que não tivesse sido ignorado à custa do pagante Zé Munícipe…

Mas esperem lá. Não é só… Violação de lei? Como assim? Como é que a argumentação peticionária ou da base factual viola a lei? Vejamos.

Se em termos de decisão judicial os factos de direito são discutíveis e interpretáveis pelas partes (e são-no bastas vezes), as questões factuais não têm discussão. Factos são isso mesmo, factos, não passíveis de interpretação ou leitura dúbia. Ver a decisão apontar quatro violações básicas da lei LGTFP (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas) diz bem dos fundamentos do trabalho jurídico levado a cabo pelo representante legal da Câmara Municipal da Moita. A quem a Câmara Municipal suporta uma avença que tendo os seus custos, não entram na minha opinião na dimensão do custo destes erros. Serão básicos? Sem dúvida. Basta ler a sentença para perceber que a Câmara Municipal da Moita errou prazos, fez o que julgou certo fazer extemporaneamente. Já custou caro demais errar, mas não deverá ficar por aqui, vai custar ainda mais.
Perante esta decisão. o trabalhador verá o acto administrativo anulado (voluntariamente se a Câmara obedecer à decisão do Tribunal) ou coercivamente se decidir o seu contrário. Não me deito a adivinhar nesta matéria, mas não me espantaria se não obedecesse, mas isto é uma dedução minha.
Onde o erro desta questão começa ser mais caro é no que potencialmente se segue. Ao trabalhador, a lei concede o direito de se ver ressarcido nos danos não patrimoniais em virtude de acto ilegal e mais uma parcela se somará aos custos (e custas) de um processo que obviamente foi mal fundamentado, pessimamente conduzido e instruído sem qualquer cuidado jurídico.
Não tenho qualquer dúvida, e quem quer que se ponha nos sapatos do trabalhador também a não teria, que o trabalhador verá acolhida a sua intenção de ser compensado pela exposição pública disciplinar a que se viu submetido e vendo a pretensão deferida judicialmente, recolher daí a indemnização que o Tribunal decidir fixar. Os números divergem nestas decisões, mas não será coisa leve.
Há mais processos apreciados deste teor ainda em curso. Se a base instrutória enfermar da qualidade jurídica deste processo disciplinar, é multiplicar os custos e perceber quão danosa pode ser uma apreciação errada.
Quod erat demonstrandum como diriam os romanos.